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Project Gutenberg's Historias Sem Data, by Joaquim Maria Machado de Assis
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.net
Title: Historias Sem Data
Author: Joaquim Maria Machado de Assis
Release Date: July 3, 2010 [EBook #33056]
Language: Portuguese
*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIAS SEM DATA ***
Produced by Pedro Saborano
HISTORIAS SEM DATA
OBRAS DO AUTOR
MEMORIAS POSTHUMAS DE BRAZ CUBAS 1 vol.
HISTORIAS SEM DATA 1 vol.
PAPEIS AVULSOS 1 vol.
HELENA 1 vol.
YAYÁ GARCIA 1 vol.
A MÃO E A LUVA 1 vol.
RESURREIÇÃO 1 vol.
PHALENAS, poesias 1 vol.
AMERICANAS, poesias 1 vol.
CHRYSALIDAS, poesias 1 vol.
CONTOS FLUMINENSES 1 vol.
HISTORIAS DA MEIA NOITE 1 vol.
TU SÓ, TU, PURO AMOR 1 vol.
OS DEUSES DE CASACA, comedia 1 vol.
DESENCANTOS 1 vol.
THEATRO 1 vol.
MACHADO DE ASSIS
HISTORIAS SEM DATA
A EGREJA DO DIABO--O LAPSO--ULTIMO CAPITULO
CANTIGA DE ESPONSAES--UMA SENHORA
SINGULAR OCCURRENCIA--FULANO--CAPITULO DOS CHAPÉOS
GALERIA POSTHUMA
CONTO ALEXANDRINO--PRIMAS DE SAPUCAIA
ANECDOTA PECUNIARIA--A SEGUNDA VIDA--EX-CATHEDRA
MANUSCRIPTO DE UM SACRISTÃO
AS ACADEMIAS DE SIÃO
NOITE DE ALMIRANTE--A SENHORA DO GALVÃO
_RIO DE JANEIRO_
B. L. GARNIER.--LIVREIRO-EDITOR
_71--Rua do Ouvidor--77_
1884.
Typ. lith. a vapor, encadernação e livraria LOMBAERTS & C.
INDICE
PAGS.
ADVERTENCIA vij
A EGREJA DO DIABO 1
O LAPSO 17
ULTIMO CAPITULO 33
CANTIGA DE ESPONSAES 49
SINGULAR OCCURRENCIA 57
GALERIA POSTHUMA 71
CAPITULO DOS CHAPÉOS 87
CONTO ALEXANDRINO 113
PRIMAS DE SAPUCAIA! 131
UMA SENHORA 147
ANECDOTA PECUNIARIA 161
FULANO 181
A SEGUNDA VIDA 191
NOITE DE ALMIRANTE 205
MANUSCRIPTO DE UM SACRISTÃO 219
EX CATHEDRA 235
A SENHORA DO GALVÃO 251
AS ACADEMIAS DE SIÃO 263
ERRATA
Escaparam alguns erros typographicos faceis de emendar; entre outros,
estes: _coser-lhe_ por _coser_ (pag. 43); _estar-lhe a contar_ por
_estar a contar-lhe_ (pag. 182); _deram a força_ por _lhe deram a força_
(pag. 211); _evidente mais_ por _evidentemente mais_ (pag. 272), etc.
ADVERTENCIA
De todos os contos que aqui se acham ha dous que effectivamente não
levam data expressa; os outros a tem, de maneira que este titulo
_Historias sem data_ parecerá a alguns inintelligivel, ou vago.
Suppondo, porém, que o meu fim é definir estas paginas como tratando, em
substancia, de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo
dia, penso que o titulo está explicado. E é o peor que lhe póde
acontecer, pois o melhor dos titulos é ainda aquelle que não precisa de
explicação.
M. de A.
A EGREJA DO DIABO
CAPITULO I
DE UMA IDÉA MIRIFICA
Conta um velho manuscripto benedictino que o Diabo, em certo dia, teve a
idéa de fundar uma egreja. Embora os seus lucros fossem continuos e
grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde
seculos, sem organisação, sem regras, sem canones, sem ritual, sem nada.
Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e
obsequios humanos. Nada fixo, nada regular. Porque não teria elle a sua
egreja? Uma egreja do Diabo era o meio efficaz de combater as outras
religiões, e destruil-as de uma vez.
--Vá, pois, uma egreja, concluiu elle. Escriptura contra Escriptura,
breviario contra breviario. Terei a minha missa, com vinho e pão á
farta, as minhas predicas, bullas, novenas e todo o demais apparelho
ecclesiastico. O meu credo será o nucleo universal dos espiritos, a
minha egreja uma tenda de Abrahão. E depois, emquanto as outras
religiões se combatem e se dividem, a minha egreja será unica; não
acharei diante de mim, nem Mahomet, nem Luthero. Ha muitos modos de
affirmar; ha só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um
gesto magnifico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus
para communicar-lhe a idéa, e desafial-o; levantou os olhos, accesos de
odio, asperos de vingança, e disse comsigo:--Vamos, é tempo. E rapido,
batendo as azas, com tal estrondo que abalou todas as provincias do
abysmo, arrancou da sombra para o infinito azul.
CAPITULO II
ENTRE DEUS E DIABO
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os seraphins que
engrinaldavam o recem chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se
estar á entrada com os olhos no Senhor.
--Que me queres tu? perguntou este.
--Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por
todos os Faustos do seculo e dos seculos.
--Explica-te.
--Senhor, a explicação é facil; mas permitti que vos diga: recolhei
primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor logar, mandai que as mais
afinadas citharas e alaúdes o recebam com os mais divinos córos...
--Sabes o que elle fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de
doçura.
--Não, mas provavelmente é dos ultimos que virão ter comvosco. Não tarda
muito que o céu fique semelhante a uma casa vasia, por causa do preço,
que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou
fundar uma egreja. Estou cançado da minha desorganisação, do meu reinado
casual e adventicio. É tempo de obter a victoria final e completa. E
então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não accuseis de
dissimulação... Boa idéa, não vos parece?
--Vieste dizel-a, não legitimal-a, advertiu o Senhor.
--Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor proprio gosta de ouvir o
applauso dos mestres. Verdade é que n'este caso seria o applauso de um
mestre vencido, e uma tal exigencia... Senhor, desço a terra; vou largar
a minha pedra fundamental.
--Vai.
--Quereis que venha annunciar-vos o remate da obra?
--Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cançado ha
tanto da tua desorganisação, só agora pensaste em fundar uma egreja?
Diabo sorriu com certo ar de escarneo e triumpho. Tinha alguma idéa
cruel no espirito, algum reparo picante no alforge da memoria, qualquer
cousa que, n'esse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao
proprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
--Só agora conclui uma observação, começada desde alguns seculos, e é
que as virtudes, filhas do céu, são em grande numero comparaveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu
proponho-me a puxal-as por essa franja, e trazel-as todas para minha
egreja; atraz d'ellas virão as de seda pura...
--Velho rhetorico! murmurou o Senhor.
--Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do
mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do
mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupillas centelham de
curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do peccado. Vêde o
ardor,--a indifferença, ao menos,--com que esse cavalheiro põe em
lettras publicas os beneficios que liberalmente espalha,--ou sejam
roupas ou botas, ou moedas, ou quaesquer d'essas materias necessarias á
vida... Mas não quero parecer que me detenho em cousas miudas; não
fallo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas
procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma commenda...
Vou a negocios mais altos...
N'isto os seraphins agitaram as azas pesadas de fastio e somno. Miguel e
Gabriel fitaram no Senhor um olhar de supplica. Deus interrompeu o
Diabo.
--Tu és vulgar, que é o peior que póde acontecer a um espirito da tua
especie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e
redito pelos moralistas do mundo. É assumpto gasto; e se não tens força,
nem originalidade para renovar um assumpto gasto, melhor é que te cales
e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os signaes
vivos do tedio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes
tu o que elle fez?
--Já vos disse que não.
--Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um
naufragio, ia salvar-se n'uma taboa; mas viu um casal de noivos, na flor
da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a taboa de salvação e
mergulhou na eternidade. Nenhum publico: a agua e o céu por cima. Onde
achas ahi a franja de algodão?
--Senhor, eu sou, como sabeis, o espirito que nega.
--Negas esta morte?
--Nego tudo. A misanthropia póde tomar aspecto de caridade; deixar a
vida aos outros, para um misanthropo, é realmente aborrecel-os...
--Rhetorico e subtil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua egreja;
chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impuzera-lhe
silencio; os seraphins, a um signal divino, encheram o céu com as
harmonias de seus canticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no
ar; dobrou as azas, e, como um raio, caiu na terra.
CAPITULO III
A BOA NOVA AOS HOMENS
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar
a cogula benedictina, como habito de boa fama, e entrou a espalhar uma
doutrina nova e extraordinaria, com uma voz que reboava nas entranhas do
seculo. Elle promettia aos seus discipulos e fieis as delicias da terra,
todas as glorias, os deleites mais intimos. Confessava que era o Diabo;
mas confessava-o para rectificar a noção que os homens tinham d'elle e
desmentir as historias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
--Sim, sou o Diabo, repetia elle; não o Diabo das noites sulphureas, dos
contos somniferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e unico,
o proprio genio da natureza, a que se deu aquelle nome para arredal-o do
coração dos homens. Vêde-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai.
Vamos lá: tomai d'aquelle nome, inventado para meu desdouro, fazei
d'elle um trophéu e um labaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo,
tudo, tudo...
Era assim que fallava, a principio, para excitar o enthusiasmo, espertar
os indifferentes, congregar, em summa, as multidões ao pé de si. E ellas
vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A
doutrina era a que podia ser na bocca de um espirito de negação. Isso
quanto á substancia, porque, ácerca da fórma, era umas vezes subtil,
outras cynica e deslavada.
Clamava elle que as virtudes aceitas deviam ser substituidas por outras,
que eram as naturaes e legitimas. A soberba, a luxuria, a preguiça foram
rehabilitadas, e assim tambem a avareza, que declarou não ser mais do
que a mãi da economia, com a differença que a mãi era robusta, e a filha
uma esgalgada. A ira tinha a melhor defeza na existencia de Homero; sem
o furor de Achilles, não haveria a _Illiada_: «Musa, canta a colera de
Achilles, filho de Peleu...» O mesmo disse da gula, que produziu as
melhores paginas de Rabelais, e muitos bons versos de _Hyssope_; virtude
tão superior, que ninguem se lembra das batalhas de Lucullo, mas das
suas ceias; foi a gula que realmente o fez immortal. Mas, ainda pondo de
lado essas razões de ordem litteraria ou historica, para só mostrar o
valor intrinseco d'aquella virtude, quem negaria que era muito melhor
sentir na bocca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os
máus boccados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo promettia
substituir a vinha do Senhor, expressão metaphorica, pela vinha do
Diabo, locução directa e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus
com o fructo das mais bellas cepas do mundo. Quanto á inveja, prégou
friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades
infinitas; virtude preciosa, que chegava a supprir todas as outras, e ao
proprio talento.
As turbas corriam atraz d'elle enthusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a
grandes golpes de eloquencia, toda a nova ordem de cousas, trocando a
noção d'ellas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que elle dava da
fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a
força; e concluia: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, elle não
exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem
canhotos, outros dextros; aceitava a todos, menos os que não fossem
nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da
venalidade. Um casuista do tempo chegou a confessar que era um monumento
de logica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercicio de um direito
superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi,
o teu sapato, o teu chapéo, cousas que são tuas por uma razão juridica
e legal, mas que, em todo caso, estão fóra de ti, como é que não pódes
vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que
são mais do que tuas, porque são a tua propria consciencia, isto é, tu
mesmo? Negal-o é cair no absurdo e no contraditorio. Pois não ha
mulheres que vendem os cabellos? não póde um homem vender uma parte do
seu sangue para transfundil-o a outro homem anemico? e o sangue e os
cabellos, partes physicas, terão um privilegio que se nega ao caracter,
á porção moral do homem? Demonstrando assim o principio, o Diabo não se
demorou em expôr as vantagens de ordem temporal ou pecuniaria; depois,
mostrou ainda que, á vista do preconceito social, conviria dissimular o
exercicio de um direito tão legitimo, o que era exercer ao mesmo tempo a
venalidade e a hypocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, rectificava tudo. Está claro que
combateu o perdão das injurias e outras maximas de brandura e
cordialidade. Não prohibiu formalmente a calumnia gratuita, mas induziu
a exercel-a mediante retribuição, ou pecuniaria, ou de outra especie;
nos casos, porém, em que ella fosse uma expansão imperiosa da força
imaginativa, e nada mais, prohibia receber nenhum salario, pois
equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as fórmas de respeito
foram condemnadas por elle, como elementos possiveis de um certo decoro
social e pessoal; salva, todavia, a unica excepção do interesse. Mas
essa mesma excepção foi logo eliminada, pela consideração de que o
interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o
sentimento applicado e não aquelle.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a
solidariedade humana. Com effeito, o amor do proximo era um obstaculo
grave á nova instituição. Elle mostrou que essa regra era uma simples
invenção de parasitas e negociantes insolvaveis; não se devia dar ao
proximo se não indifferença; em alguns casos, odio ou despreso. Chegou
mesmo á demonstração de que a noção de proximo era errada, e citava esta
phrase de um padre de Napoles, aquelle fino e lettrado Galliani, que
escrevia a uma das marquezas de antigo regimen: «Leve a breca o proximo!
Não ha proximo!» A unica hypothese em que elle permittia amar ao proximo
era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa especie de
amor tinha a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor
do individuo a si mesmo. E como alguns discipulos achassem que uma tal
explicação, por metaphysica, escapava á comprehensão das turbas, o Diabo
recorreu a um apologo:--Cem pessoas tomam acções de um banco, para as
operações communs; mas cada accionista não cuida realmente se não nos
seus dividendos: é o que acontece aos adulteros. Este apologo foi
incluido no livro da sabedoria.
CAPITULO IV
FRANJAS E FRANJAS
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de velludo
acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a
capa ás ortigas e vinham alistar-se na egreja nova. Atraz foram chegando
as outras, e o tempo abençoou a instituição. A egreja fundára-se; a
doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a
conhecesse, uma lingua que não a traduzisse, uma que não a amasse. Diabo
alçou brados de triumpho.
Um dia, porém, longos annos depois notou o Diabo que muitos dos seus
fieis, ás escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam
todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, ás
occultas. Certos glotões recolhiam-se a comer frugalmente tres ou quatro
vezes por anno, justamente em dias de preceito catholico; muitos avaros
davam esmolas, á noite, ou nas ruas mal povoadas; varios dilapidadores
do erario restituam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos fallavam, uma
ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado,
para fazer crer que estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Metteu-se a conhecer mais directamente e
mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incomprehensiveis,
como o de um droguista do Levante, que envenenára longamente uma geração
inteira, e, com o producto das drogas soccorria os filhos das victimas.
No Cairo achou um perfeito ladrão de camellos, que tapava a cara para ir
ás mesquitas. O Diabo deu com elle á entrada de uma, lançou-lhe em rosto
o procedimento; elle negou, dizendo que ia alli roubar o camello de um
drogman; roubou-o, com effeito, a vista do Diabo e foi dal-o de presente
a um muezzin, que rezou por elle a Allah. O manuscripto benedictino cita
muitas outras descobertas extraordinarias, entre ellas esta, que
desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apostolos era
um calabrez, varão de cincoenta annos, insigne falsificador de
documentos, que possuia uma bella casa na campanha romana, telus,
estatuas, bibliotheca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a metter-se
na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não
furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo
angariado a amizade de um conego, ia todas as semanas confessar-se com
elle, n'uma capella solitaria; e, comquanto não lhe desvendasse nenhuma
das suas acções secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao
levantar-se. Diabo mal póde crer tamanha aleivosia. Mas não havia
duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de reflectir,
comparar e concluir do expectaculo presente alguma cousa analoga ao
passado. Voou de novo ao céu, tremulo de raiva, ancioso de conhecer a
causa secreta de tão singular phenomeno. Deus ouviu-o com infinita
complacencia; não o interrompeu, não o reprehendeu, não triumphou,
sequer, d'aquella agonia satanica. Poz os olhos n'elle, e disse-lhe:
Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de
seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? é a
eterna contradicção humana.
FIM DA EGREJA DO DIABO.
O LAPSO
E vieram todos os officiaes... e o resto do povo, desde o pequeno
até ao grande.
E disseram ao propheta Jeremias: Seja aceita a nossa supplica
na tua presença.
JEREM. XLII, 1, 2.
Não me perguntem pela familia do Dr. Jeremias Halma, nem o que e que
elle veiu fazer ao Rio de Janeiro, n'aquelle anno de 1768, governando o
Conde de Azambuja, que a principio se disse o mandára buscar; esta
versão durou pouco. Veiu, ficou e morreu com o seculo. Posso affirmar
que era medico e hollandez. Viajára muito, sabia toda a chimica do
tempo, e mais alguma; fallava correntemente cinco ou seis linguas vivas
e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia
com um novo metro, e engendrou uma theoria da formação dos diamantes.
Não conto os melhoramentos therapeuticos, e outras muitas cousas, que o
recommendam á nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem
orgulhoso. Ao contrario, a vida e a pessoa d'elle eram como a casa que
um patricio lhe arranjou na rua do Piolho, casa singelissima, onde elle
morreu pelo natal de 1799. Sim, o Dr. Jeremias era simples, lhano,
modesto, tão modesto que... Mas isto seria transtornar a ordem do conto.
Vamos ao principio.
No fim da rua do Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos
pobres, perto da antiga rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal
Thomé Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas inducções, vereador
da camara. Vereador ou não, este Thomé Gonçalves não tinha só dinheiro,
tinha tambem dividas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia
explicar os seus atrazos, a velhacaria tambem; mas quem opinasse por uma
ou outra dessas interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração
grave. Realmente, não valia a pena dar-se ninguem a tarefa de escrever
algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins do seculo
passado, um homem que, por velhacaria ou deleixo, deixava de pagar aos
credores. A tradição affirma que este nosso concidadão era exacto em
todas as cousas, pontual nas obrigações mais vulgares, severo e até
meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que tinham
a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que
usava pagar), não lhe regateavam provas de affeição e apreço: e, se é
certo que foi vereador, como tudo faz crer, póde-se jurar que o foi a
contento da cidade.
Mas então...? La vou; nem é outra a materia do escripto, senão esse
curioso phenomeno, cuja causa, se a conhecemos, foi porque a descobriu o
Dr. Jeremias. Em uma tarde de procissão, Thomé Gonçalves, trajado com o
habito de uma ordem terceira, ia segurando uma das varas do pallio, e
caminhando com a placidez de um homem que não faz mal a ninguem. Nas
janellas e ruas estavam muitos dos seus credores; dois, entretanto, na
esquina do becco das Cancellas (a procissão descia a rua do Hospicio),
depois de ajoelhados, resados, persignados e levantados, perguntaram um
ao outro, se não era tempo de recorrer á justiça.
--Que é que me póde acontecer? dizia um d'elles. Se brigar commigo,
melhor; não me levará mais nada de graça. Não brigando, não lhe posso
negar o que me pedir, e na esperança de receber os atrasados, vou
fiando... Não, senhor; não póde continuar assim.
--Pela minha parte, acudiu o outro, se ainda não fiz nada, é por causa
da minha dona, que é medrosa, e entende que não devo brigar com pessoa
tão importante... Mas eu como ou bebo da importancia dos outros? E as
minhas cabelleiras?
Este era um cabelleireiro da rua da Valla defronte da Sé, que vendera ao
Thomé Gonçalves dez cabelleiras, em cinco annos, sem lhe haver nunca um
real. O outro era alfaiate, e ainda maior credor que o primeiro. A
procissão passára inteiramente; elles ficaram na esquina, ajustando o
plano de mandar os meirinhos ao Thomé Gonçalves. O cabelleireiro
advertiu que outros muitos credores só esperavam um signal para cahir em
cima do devedor remisso; e o alfaiate lembrou a conveniencia de metter
na conjuração o Matta-sapateiro, que vivia desesperado. Só a elle devia
o Thomé Gonçalves mais de oitenta mil reis. N'isso estavam, quando por
traz d'elles ouviram uma voz, com sotaque estrangeiro, perguntando
porque motivo conspiravam contra um homem doente. Voltaram-se, e, dando
com o Dr. Jeremias, desbarretaram-se os dois credores, tornados de
profunda veneração; em seguida disseram que tanto não era doente o
devedor, que lá ia andando na procissão, muito teso, pegando uma das
varas do pallio.
--Que tem isso? interrompeu o medico; ninguem lhes diz que está doente
dos braços, nem das pernas...
--Do coração? do estomago?
--Nem coração, nem estomago, respondeu o Dr. Jeremias. E continuou, com
muita doçura, que se tratava de negocios altamente especulativos, que
não podia dizer alli, na rua, nem sabia mesmo se elles chegariam a
entendel-o. Se eu tiver de pentear uma cabelleira ou talhar um
calção--accrescentou para os não affligir,--é provavel que não alcance
as regras dos seus officios tão uteis, tão necessarios ao Estado... Eh!
eh! eh!
Rindo assim, amigavelmente cortejou-os e foi andando. Os dois credores
ficaram embascados. O cabelleireiro foi o primeiro que fallou, dizendo
que a noticia do Dr. Jeremias não era tal que os devesse afrouxar no
proposito de cobrar as dividas. Se até os mortos pagam, ou alguem por
elles, reflexionou o cabelleireiro, não é muito exigir aos doentes igual
obrigação. O alfaiate, invejoso da pilheria, fel-a sua cosendo-lhe este
babado:--Pague e cure-se.
Não foi dessa opinião o Matta-sapateiro, que entendeu haver alguma razão
secreta nas palavras do doutor Jeremias, e propoz que primeiro se
examinasse bem o que era, e depois se resolvesse o mais idoneo.
Convidaram então outros credores a um conciliabulo, no domingo proximo,
em casa de uma D. Anninha, para as bandas do Rocio, a pretexto de um
baptizado. A precaução era discreta, para não fazer suppor ao intendente
da policia que se tratava de alguma tenebrosa machinação contra o
Estado. Mal anoiteceu, começaram a entrar os credores, embuçados em
capotes, e, como a illuminação publica só veiu a principiar com o
vice-reinado do conde de Rezende, levava cada qual uma lanterna na mão,
ao uso do tempo, dando assim ao conciliabulo um rasgo pintoresco e
theatral. Eram trinta e tantos, perto de quarenta--e não eram todos.
A theoria de Ch. Lamb ácerca da divisão do genero humano em duas grandes
raças, é posterior ao conciliabulo do Rocio; mas nenhum outro exemplo a
demonstraria melhor. Com effeito, o ar abatido ou afflicto d'aquelles
homens, o desespero de alguns, a preoccupação de todos, estavam de
antemão provando que a theoria do fino ensaista é verdadeira, e que das
duas grandes raças humanas,--a dos homens que emprestam, e a dos que
pedem emprestado,--a primeira contrasta pela tristeza do gesto com as
maneiras rasgadas e francas da segunda, _the open, trusting, generous
manners of the other_. Assim que, n'aquella mesma hora, o Thomé
Gonçalves, tendo voltado da procissão, regalava alguns amigos com os
vinhos e gallinhas que comprára fiado; ao passo que os credores
estudavam ás escondidas, com um ar desenganado e amarello, algum meio de
rehaver o dinheiro perdido.
Logo foi o debate; nenhuma opinião chegava a concertar os espiritos. Uns
inclinavam-se á demanda, outros á espera, não poucos aceitavam o alvitre
de consultar o Dr. Jeremias. Cinco ou seis partidarios d'este parecer
não o defendiam senão com a intenção secreta e disfarçada de não fazer
cousa nenhuma; eram os servos do medo e da esperanca. O cabelleireiro
oppunha-se-lhe, e perguntava que molestia haveria que impedisse um homem
de pagar o que deve. Mas o Matta-sapateiro:--«Sr. compadre, nos não
entendemos d'esses negocios; lembre-se que o doutor é estrangeiro, e que
nas terras estrangeiras sabem cousas que nunca lembraram ao diabo. Em
todo caso, só perdemos algum tempo e nada mais.» Venceu este parecer;
deputaram o sapateiro, o alfaiate e o cabelleireiro para entenderem-se
com o Dr. Jeremias, em nome de todos, e o conciliabulo dissolveu-se na
patuscada. Terpsychore bracejou e perneou diante d'elles as suas graças
jocundas, e tanto bastou para que alguns esquecessem a ulcera secreta
que os roia. _Eheu! fugaces..._ Nem mesmo a dor é constante.
No dia seguinte o Dr. Jeremias recebeu os tres credores, entre sete e
oito horas da manha. «Entrem, entrem...» E com o seu largo carão
hollandez, e o riso derramado pela bocca fóra, como um vinho generoso de
pipa que se rompeu, o grande medico veiu em pessoa abrir-lhes a porta.
Estudava n'esse momento uma cobra, morta de vespera, no morro de Santo
Antonio; mas a humanidade, costumava elle dizer, é anterior á sciencia.
Convidou os tres a sentarem-se nas tres unicas cadeiras devolutas; a
quarta era a d'elle; as outras, umas cinco ou seis, estavam atulhadas de
objectos de toda a casta.
Foi o Matta-sapateiro quem expoz a questão; era dos tres o que reunia
maior cópia de talentos diplomaticos. Começou dizendo que o engenho do
Sr. doutor ia salvar da miseria uma porção de familias, e não seria a
primeira nem a ultima grande obra de um medico que, não desfazendo nos
da terra, era o mais sabio de quantos cá havia desde o governo de Gomes
Freire. Os credores de Thomé Gonçalves não tinham outra esperança.
Sabendo que o Sr. doutor attribuia os atrazos d'aquelle cidadão a uma
doença, tinham assentado que primeiro se tentasse a cura, antes de
qualquer recurso á justiça. A justiça ficaria para o caso de desespero.
Era isto o que vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores;
desejavam saber se era verdade que, além de outros achaques humanos,
havia o de não pagar as dividas, se era mal incuravel, e, não o sendo,
se as lagrimas de tantas familias...
--Ha uma doença especial, interrompeu o Dr. Jeremias, visivelmente
commovido, um lapso da memoria; o Thomé Gonçalves perdeu inteiramente a
noção de pagar. Não é por descuido, nem de proposito que elle deixa de
saldar as contas; é porque esta idéa de pagar, de entregar o preço de
uma cousa, varreu-se-lhe da cabeça. Conheci isto ha dois mezes, estando
em casa d'elle, quando alli foi o prior do Carmo, dizendo que ia
«pagar-lhe a fineza de uma visita». Thomé Gonçalves, apenas o prior se
despediu, perguntou-me o que era _pagar_; accrescentou que, alguns dias
antes, um boticario lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro
esclarecimento, parecendo-lhe até que já a ouvira a outras pessoas; por
ouvil-a da bocca do prior, suppunha ser latim. Comprehendi tudo; tinha
estudado a molestia em varias partes do mundo, e comprehendi que elle
estava atacado do lapso. Foi por isso que disse outro dia a estes dois
senhores que não demandassem um homem doente.
--Mas então, aventurou o Matta, pallido, o nosso dinheiro está
completamente perdido...
--A molestia não é incuravel, disse o medico
--Ah!
--Não é; conheço e possuo a droga curativa, e já a empreguei em dous
grandes casos: um barbeiro, que perdera a noção do espaço, e, á noite
estendia a mão para arrancar as estrellas do céu, e uma senhora da
Catalunha, que perdera a noção do marido. O barbeiro arriscou muitas
vezes a vida, querendo sahir pelas janellas mais altas das casas, como
se estivesse ao rez do chão...
--Santo Deus! exclamaram os tres credores.
--É o que lhes digo, continuou placidamente o medico. Quanto á dama
catalã, a principio confundia o marido com um licenciado Mathias, alto e
fino, quando o marido era grosso e baixo; depois com um capitão, D.
Hermogenes, e, no tempo em que comecei a tratal-a com um clerigo. Em
tres mezes ficou boa. Chamava-se D. Agostinha.
Realmente, era uma droga miraculosa. Os tres credores estavam radiantes
de esperança; tudo fazia crer que o Thomé Gonçalves padecia do lapso, e,
uma vez que a droga existia, e o medico a tinha em casa... Ah! mas aqui
pegou o carro. O Dr. Jeremias não era familiar da casa do enfermo,
embora entretivesse relações com elle; não podia ir offerecer-lhe os
seus prestimos. Thomé Gonçalves não tinha parentes que tomassem a
responsabilidade de convidar o medico, nem os credores podiam tomal-a a
si. Mudos, perplexos, consultaram-se com os olhos. Os do alfaiate, como
os do cabelleiro, exprimiram este alvitre desesperado; cotisarem-se os
credores, e, mediante uma quantia grossa e appetitosa, convidarem o Dr.
Jeremias á cura; talvez o interesse... Mas o illustre Matta via o perigo
de um tal proposito, porque o doente podia não ficar bom, e a perda
seria dobrada. Grande era a angustia; tudo parecia perdido. O medico
rolava entre os dedos a boceta de rapé, esperando que elles se fossem
embora, não impaciente, mas risonho. Foi então que o Matta, como um
capitão dos grandes dias, viu o ponto fraco do inimigo; advertiu que as
suas primeiras palavras tinham commovido o medico, e tornou ás lagrimas
das familias, aos filhos sem pão, porque elles não eram senão uns
tristes officiaes de officio ou mercadores de pouca fazenda, ao passo
que o Thomé Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes,
cabelleiras, tudo o que lhes custava dinheiro, tempo e saude... Saude,
sim, senhor; os callos de suas mãos mostravam bem que o officio era
duro; e o alfaiate, seu amigo, que alli estava presente, e que
entisicava, ás noites, á luz de uma candeia, zas-que-darás, puchando a
agulha...
Magnanimo Jeremias! Não o deixou acabar; tinha os olhos humidos de
lagrimas. O acanho de suas maneiras era compensado pelas expansões de um
coração pio e humano. Pois, sim; ia tentar o curativo, ia pôr a sciencia
ao serviço de uma causa justa. Demais, a vantagem era tambem e
principalmente do proprio Thomé Gonçalves, cuja fama andava abocanhada,
por um motivo em que elle tinha tanta culpa como o doudo que pratica uma
iniquidade. Naturalmente, a alegria dos deputados traduziu-se em
rapa-pés infindos e grandes louvores aos insignes merecimentos do
medico. Este cortou-lhes modestamente o discurso, convidando-os a
almoçar, obsequio que elles não aceitaram, mas agradeceram com palavras
cordialissimas. E, na rua quando elle já os não podia ouvir, não se
fartavam de elogiar-lhe a sciencia, a bondade, a generosidade, a
delicadeza, os modos tão simples! tão naturaes!
Desde esse dia começou Thomé Gonçalves a notar a assiduidade do medico,
e, não desejando outra cousa, porque lhe queria muito, fez tudo o que
lhe lembrou por atal-o de vez aos seus penates. O lapso do infeliz era
completo; tanto a ideia de _pagar_, como as ideias co-relatas de
_credor_, _divida_, _saldo_, e outras tinham-se-lhe apagado da memoria,
constituindo-lhe assim um largo furo no espirito. Temo que se me argua
de comparações extraordinarias, mas o abysmo de Pascal é o que mais
promptamente veiu ao bico da penna. Thomé Gonçalves tinha o abysmo de
Pascal, não ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam
n'elle mais de sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger
de dentes da Escriptura. Urgia extrahir todos esses infelizes e entulhar
o buraco.
Jeremias fez crer ao doente que andava abatido, e, para retemperal-o,
começou a applicar-lhe a droga. Não bastava a droga; era mister um
tratamento subsidiario, porque a cura operava-se de dous modos:--o modo
geral e abstracto, restauração da ideia de pagar, com todas as noções
co-relatas--era a parte confiada á droga; e o modo particular e
concreto, insinuação ou designação de uma certa divida e de um certo
credor--era a parte do medico. Supponhamos que o credor escolhido era o
sapateiro. O medico levava o doente ás lojas de sapatos, para assistir á
compra e venda da mercadoria, e ver uma e muitas vezes a acção de pagar;
fallava da fabricação e venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os
preços do calçado n'aquelle anno de 1768 com o que tinha trinta ou
quarenta annos antes; fazia com que o sapateiro fosse dez, vinte vezes a
casa de Thomé Gonçalves levar a conta e pedir o dinheiro, e cem outros
estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabelleireiro, o segeiro, o
boticario, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão natural
de estar a doença mais arraigada, e lucrando os ultimos com o trabalho
anterior, d'onde lhes vinha a compensação da demora.
Tudo foi pago. Não se descreve a alegria dos credores, não se
transcrevem as bençãos com que elles encheram o nome do Dr. Jeremias.
Sim, senhor, é um grande homem, bradavam em toda a parte. Parece cousa
de feitiçaria, aventuravam as mulheres. Quanto ao Thomé Gronçalves,
pasmado de tantas dividas velhas, não se fartava de elogiar a
longanimidade dos credores, censurando-os ao mesmo tempo pela
accumulação.
--Agora, dizia-lhes, não quero contas de mais de oito dias.
--Nós é que lhe marcaremos o tempo, respondiam generosamente os
credores.
Restava entretanto, um credor. Esse era o mais recente, o proprio Dr.
Jeremias, pelos honorarios d'aquelle serviço relevantes. Mas, ai delle!
a modestia atou-lhe a lingua. Tão expansivo era de coração, como
acanhado de maneiras; e planeou tres, cinco investidas, sem chegar a
executar nada. E aliás era facil; bastava insinuar-lhe a divida pelo
methodo usado em relação á dos outros; mas seria bonito? perguntava a si
mesmo; seria decente? etc., etc. E esperava, ia esperando. Para não
parecer que se lhe mettia á cara, entrou a rarear as visitas; mas o
Thomé Gonçalves ia ao casebre da rua do Piolho, e trazia-o a jantar, a
ceiar, a fallar de cousas estrangeiras, em que era muito curioso. Nada
de pagar. Jeremias chegou a imaginar que os credores... Mas os credores,
ainda quando pudesse passar-lhes pela cabeça a ideia de ir lembrar a
divida, não chegariam a fazel-o, porque a suppunham paga antes de todas.
Era o que diziam uns aos outros, entre muitas formulas da sabedoria
popular:--Matheus, primeiro os teus--A boa justiça começa por casa--Quem
é tolo pede a Deus que o mate, etc. Tudo falso; a verdade é que o Thomé
Gonçalves, no dia em que fallecera, tinha um só credor no mundo:--o Dr.
Jeremias.
Este, nos fins do seculo, chegára á canonisação.
--«Adeus, grande homem!» dizia-lhe o Matta, ex-sapateiro, em 1798, de
dentro da sege, que o levava á missa dos carmelitas. E o outro, curvo de
velhice, melancolicamente, olhando para os bicos dos pés:
--Grande homem, mas pobre diabo.
FIM DO LAPSO.
ULTIMO CAPITULO
Ha entre os suicidas um excellente costume, que é não deixar a vida sem
dizer o motivo e as circumstancias que os armam contra ella. Os que se
vão calados, raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não
têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excellente: em primeiro logar,
é um acto de cortezia, não sendo este mundo um baile, de onde um homem
possa esgueirar-se antes do cotilhão; em segundo logar, a imprensa
recolhe e divulga os bilhetes posthumos, e o morto vive ainda um dia ou
dois, ás vezes uma semana mais.
Pois apezar da excellencia do costume, era meu proposito sahir calado. A
razão é que, tendo sido caipora em minha vida toda, temia que qualquer
palavra ultima pudesse levar-me alguma complicação á eternidade. Mas um
incidente de ha pouco trocou-me o plano, e retiro-me deixando, não só um
escripto, mas dous. O primeiro é o meu testamento, que acabo de compor e
fechar, e está aqui em cima da mesa, ao pé da pistola carregada. O
segundo é este resumo de autobiographia. E note-se que não dou o segundo
escripto senão porque é preciso esclarecer o primeiro, que pareceria
absurdo ou inintelligivel, sem algum commentario. Disponho alli que,
vendidos os meus poucos livros, roupa de uso e um casebre que possuo em
Catumby, alugado a um carpinteiro, seja o producto empregado em sapatos
e botas novas, que se distribuirão por um modo indicado, e confesso que
extraordinario. Não explicada a razão de um tal legado, arrisco a
validade do testamento. Ora, a razão do legado brotou do incidente de ha
pouco, e o incidente liga-se á minha vida inteira.
Chamo-me Mathias Deodato de Castro e Mello, filho do sargento-mór
Salvador Deodato de Castro e Mello e de D. Maria da Soledade Pereira,
ambos fallecidos. Sou natural de Corumbá, Matto Grosso; nasci em 3 de
março de 1820; tenho portanto, cincoenta e um annos, hoje, 3 de março de
1871.
Repito, sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens. Ha uma
locução proverbial, que eu litteralmente realisei. Era em Corumbá; tinha
sete para oito annos, embalava-me na rede, á hora da sesta, em um
quartinho de telha vã; a rede, ou por estar frouxa a argola, ou por
impulso demasiado violento da minha parte, desprendeu-se de uma das
paredes, e deu commigo no chão. Cahi de costas; mas, assim mesmo de
costas, quebrei o nariz, porque um pedaço de telha, mal seguro, que só
esperava occasião de vir abaixo, aproveitou a commoção e cahiu tambem. O
ferimento não foi grave nem longo; tanto que meu pai caçoou muito
commigo. O conego Brito, de tarde, ao ir tomar guaraná comnosco, soube
do episodio e citou o rifão, dizendo que era eu o primeiro que cumpria
exactamente este absurdo de cahir de costas e quebrar o nariz. Nem um
nem outro imaginava que o caso era um simples inicio de cousas futuras.
Não me demoro em outros revezes da infancia e da juventude. Quero morrer
ao meio-dia, e passa de onze horas. Além d'isso, mandei fóra o rapaz que
me serve, e elle póde vir mais cedo, e interromper-me a execução do
projecto mortal. Tivesse eu tempo, e contaria pelo miudo alguns
episodios doloridos, entre elles, o de umas cacetadas que apanhei por
engano. Tratava-se do rival de um amigo meu, rival de amores e
naturalmente rival derrubado. O meu amigo e a dama indignaram-se com as
pancadas quando souberam da aleivosia do outro; mas applaudiram
secretamente a illusão. Tambem não fallo de alguns achaques que padeci.
Corro ao ponto em que meu pai, tendo sido pobre toda a vida, morreu
pobrissimo, e minha mãi não lhe sobreviveu dois mezes. O conego Brito,
que acabava de ser eleito deputado, propoz então trazer-me ao Rio de
Janeiro, e veiu commigo, com a idéa de fazer-me padre; mas cinco dias
depois de chegar morreu. Vão vendo a acção constante do caiporismo.
Fiquei só, sem amigos, nem recursos, com dezeseis annos de idade. Um
conego da Capella Imperial lembrou-se de fazer-me entrar alli de
sachristão; mas, posto que tivesse ajudado muita missa em Matto Grosso,
e possuisse algumas lettras latinas, não fui admittido, por falta de
vaga. Outras pessoas induziram-me então a estudar direito, e confesso
que aceitei com resolução. Tive até alguns auxilios, a principio;
faltando-me elles depois, lutei por mim mesmo; emfim alcancei a carta de
bacharel. Não me digam que isto foi uma excepção na minha vida caipora,
porque o diploma academico levou-me justamente a cousas mui graves; mas,
como o destino tinha de flagellar-me, qualquer que fosse a minha
profissão, não attribuo nenhum influxo especial ao grau juridico.
Obtive-o com muito prazer, isso é verdade; a idade moça, e uma certa
superstição de melhora, faziam-me do pergaminho uma chave de diamante
que iria abrir todas as portas da fortuna.
E, para principiar, a carta de bacharel não me encheu sósinha as
algibeiras. Não, senhor, tinha ao lado d'ella umas outras, dez ou
quinze, fructo de um namoro travado no Rio de Janeiro, pela semana santa
de 1842, com uma viuva mais velha do que eu sete ou oito annos, mas
ardente, lepida e abastada. Morava com um irmão cégo, na rua do Conde;
não posso dar outras indicações. Nenhum dos meus amigos ignorava este
namoro; dous d'elles até liam as cartas, que eu lhes mostrava, com o
pretexto de admirar o estylo elegante da viuva, mas realmente para que
vissem as finas cousas que ella me dizia. Na opinião de todos, o nosso
casamento era certo, mais que certo; a viuva não esperava senão que eu
concluisse os estudos. Um d'esses amigos, quando eu voltei graduado,
deu-me os parabens, accentuando a sua convicção com esta phrase
definitiva:
--O teu casamento é um dogma.
E, rindo, perguntou-me se por conta do dogma, poderia arranjar-lhe
cincoenta mil réis; era para uma urgente precisão. Não tinha commigo os
cincoenta mil réis; mas o _dogma_ repercutia ainda tão docemente no meu
coração, que não descancei em todo esse dia, até arranjar-lh'os; fui
leval-os eu mesmo, enthusiasmado; elle recebeu-os cheio de gratidão.
Seis mezes depois foi elle quem casou com a viuva.
Não digo tudo o que então padeci; digo só que o meu primeiro impulso foi
dar um tiro em ambos; e, mentalmente, cheguei a fazel-o; cheguei a
vel-os, moribundos, arquejantes, pedirem-me perdão. Vingança
hypothetica; na realidade, não fiz nada. Elles casaram-se, e foram ver
do alto da Tijuca a ascenção da lua de mel. Eu fiquei relendo as cartas
da viuva. «Deus, que me ouve (dizia uma d'ellas), sabe que o meu amor é
eterno, e que eu sou tua, eternamente tua...» E, no meu atordoamento,
blasphemava commigo:--Deus é um grande invejoso; não quer outra
eternidade ao pé d'elle, e por isso desmentiu a viuva:--nem outro dogma
além do catholico, e por isso desmentiu o meu amigo. Era assim que eu
explicava a perda da namorada e dos cincoenta mil réis.
Deixei a capital, e fui advogar na roça, mas por pouco tempo. O
caiporismo foi commigo, na garupa do burro, e onde eu me apeei, apeou-se
elle tambem. Vi-lhe o dedo em tudo, nas demandas que não vinham, nas que
vinham e valiam pouco ou nada, e nas que, valendo alguma cousa, eram
invariavelmente perdidas. Além de que os constituintes vencedores são em
geral mais gratos que os outros, a successão de derrotas foi arredando
de mim os demandistas. No fim de algum tempo, anno e meio, voltei á
côrte, e estabeleci-me com um antigo companheiro de anno: o Gonçalves.
Este Gonçalves era o espirito menos juridico, menos apto para entestar
com as questões de direito. Verdadeiramente era um pulha. Comparemos a
vida mental a uma casa elegante; o Gonçalves não aturava dez minutos a
conversa do salão, esgueirava-se, descia á copa e ia palestrar com os
creados. Mas compensava essa qualidade inferior com certa lucidez, com a
presteza de comprehensão, nos assumptos menos arduos ou menos complexos,
com a facilidade de expôr, e, o que não era pouco para um pobre diabo
batido da fortuna, com uma alegria quasi sem intermittencias. Nos
primeiros tempos, como as demandas não vinham, matavamos as horas com
excellente palestra, animada e viva, em que a melhor parte era d'elle,
ou fallassemos de politica, ou de mulheres, assumpto que lhe era muito
particular.
Mas as demandas vieram vindo; entre ellas uma questão de hypotheca.
Tratava-se da casa de um empregado da alfandega, Themistocles de Sá
Botelho, que não tinha outros bens, e queria salvar a propriedade. Tomei
conta do negocio. O Themistocles ficou encantado commigo: e, duas
semanas depois, como eu lhe dissesse que não era casado, declarou-me
rindo que não queria nada com solteirões. Disse-me outras cousas e
convidou-me a jantar no domingo proximo. Fui; namorei-me da filha
d'elle, D. Rufina, moça de dezenove annos, bem bonita, embora um pouco
acanhada e meia morta. Talvez seja a educação, pensei eu. Casámo-nos
poucos mezes depois. Não convidei o caiporismo, é claro; mas na egreja,
entre as barbas rapadas e as suiças lustrosas, pareceu-me ver o carão
sardonico e o olhar obliquo do meu cruel adversario. Foi por isso que,
no acto mesmo de proferir a formula sagrada e definitiva do casamento,
estremeci, hesitei, e, emfim, balbuciei a medo o que o padre me
dictava...
Estava casado. Rufina não dispunha, é verdade, de certas qualidades
brilhantes e elegantes; não seria, por exemplo, e desde logo, uma dona
de salão. Tinha, porém, as qualidades caseiras, e eu não queria outras.
A vida obscura bastava-me; e, com tanto que ella m'a enchesse, tudo iria
bem. Mas esse era justamente o agro da empreza. Rufina (permittam-me
esta figuração chromatica) não tinha a alma negra de lady Macbeth, nem a
vermelha de Cleopatra, nem a azul de Julieta, nem a alva de Beatriz, mas
cinzenta e apagada como a multidão dos seres humanos. Era boa por
apathia, fiel sem virtude, amiga sem ternura nem eleição. Um anjo a
levaria ao céu, um diabo ao inferno, sem esforço em ambos os casos, e
sem que, no primeiro lhe coubesse a ella nenhuma gloria, nem o menor
desdouro no segundo. Era a passividade do somnambulo. Não tinha
vaidades. O pai armou-me o casamento para ter um genro doutor; ella,
não; aceitou-me como aceitaria um sachristão, um magistrado, um general,
um empregado publico, um alferes e não por impaciencia de casar, mas por
obediencia á familia, e, até certo ponto, para fazer como as outras.
Usavam-se maridos; ella queria usar tambem o seu. Nada mais antipathico
á minha propria natureza; mas estava casado.
Felizmente--ah! um felizmente n'este ultimo capitulo de um caipora, é,
na verdade, uma anomalia; mas vão lendo, e verão que o adverbio pertence
ao estylo, não á vida; é um modo de transição e nada mais. O que vou
dizer não altera o que está dito. Vou dizer que as qualidades domesticas
de Rufina davam-lhe muito merito. Era modesta; não amava bailes, nem
passeios, nem janellas. Vivia comsigo. Não mourejava em casa, nem era
preciso; para dar-lhe tudo, trabalhava eu, e os vestidos e chapéus, tudo
vinha «das francezas», como então se dizia, em vez de modistas. Rufina,
no intervallo das ordens que dava, sentava-se horas e horas, bocejando o
espirito, matando o tempo, uma hydra de cem cabeças, que não morria
nunca; mas, repito, com todas essas lacunas, era boa dona de casa. Pela
minha parte, estava no papel das rãs que queriam um rei; a differença é
que, mandando-me Jupiter um cepo, não lhe pedi outro, por que viria a
cobra e engolia-me. Viva o cepo! disse commigo. Nem conto estas cousas,
senão para mostrar a logica e a constancia do meu destino.
Outro _felizmente_; e este não é só uma transição de phrase. No fim de
anno e meio, abotoou no horisonte uma esperança, e, a calcular pela
commoção que me deu a noticia, uma esperança suprema e unica. Era o
desejado que chegava. Que desejado? um filho. A minha vida mudou logo.
Tudo me sorria como um dia de noivado. Preparei-lhe um recebimento
regio; comprei-lhe um rico berço, que me custou bastante; era de ebano e
marfim, obra acabada; depois, pouco a pouco, fui comprando o enxoval;
mandei-lhe coser as mais finas cambraias, as mais quentes flanellas,
uma linda touca de renda, comprei-lhe um carrinho, e esperei, esperei,
prompto a bailar diante d'elle, como David diante da arca... Ai,
caipora! a arca entrou vasia em Jerusalem; o pequeno nasceu morto.
Quem me consolou no mallogro foi o Gonçalves, que devia ser padrinho do
pequeno, e era amigo, comensal e confidente nosso. Tem paciencia,
disse-me, serei padrinho do que vier. E confortava-me, fallava-me de
outras cousas, com ternura de amigo. O tempo fez o resto. O proprio
Gonçalves advertiu-me depois que, se o pequeno tinha de ser caipora,
como eu dizia que era, melhor foi que nascesse morto.
--E pensas que não? redargui.
Gonçalves sorriu; elle não acreditava no meu caiporismo. Verdade é que
não tinha tempo de acreditar em nada; todo era pouco para ser alegre.
Afinal, começára a converter-se á advocacia, já arrasoava autos, já
minutava petições, já ia ás audiencias, tudo porque era preciso viver,
dizia elle. E alegre sempre. Minha mulher achava-lhe muita graça, ria
longamente dos ditos d'elle, e das anecdotas, que ás vezes eram picantes
demais. Eu, a principio, reprehendia-o em particular, mas acostumei-me a
ellas. E depois, quem é que não perdoa as facilidades de um amigo, e de
um amigo jovial? Devo dizer que elle mesmo se foi refreando, e d'alli a
algum tempo, comecei a achar-lhe muita seriedade. Estás namorado,
disse-lhe um dia; e elle, empallidecendo, respondeu que sim, e
accrescentou sorrindo, embora frouxamente, que era indispensavel casar
tambem. Eu, á mesa, fallei do assumpto.
--Rufina, você sabe que o Gonçalves vai casar?
--É caçoada d'elle, interrompeu vivamente o Gonçalves.
Dei ao diabo a minha indiscrição, e não fallei mais n'isso; nem elle.
Cinco mezes depois... A transição é rapida; mas não ha meio de a fazer
longa. Cinco mezes depois, adoeceu Rufina, gravemente, e não resistiu
oito dias; morreu de uma febre perniciosa.
Cousa singular:--em vida, a nossa divergencia moral trazia a frouxidão
dos vinculos, que se sustinham principalmente da necessidade e do
costume. A morte, com o seu grande poder espiritual, mudou tudo; Rufina
appareceu-me como a esposa que desce do Libano, e a divergencia foi
substituida pela total fusão dos seres. Peguei da imagem, que enchia a